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Colcha de retalhos

Sempre fui estrangeira, mesmo antes de ter consciência disso. Mudanças fazem parte da minha história de vida, e não é de hoje que digo isso. Depois de mudar várias vezes de casas, bairros, cidades e estados, mudei de continente. Fui para o Oriente.

Foi somente na China que comecei a olhar para trás e perceber uma vez mais, que ali estava eu, fazendo, uma vez mais, que sempre fiz: me adaptar às circunstâncias. E logo constatei que não importa, aonde eu for, carregarei comigo esse espírito de mudar, recomeçar

Com todas essas vivencias, aprendi a manter a minha essência, me aprimorando, me repaginando a cada mudança – tenha sido ela radical (ou não). No final, somos aquilo que pensamos, realizamos, guardamos na memória. Nossas lembranças, bem como as nossas experiências, constroem nossa identidade e individualidade: ninguém é capaz de viver o que vivemos. Somos únicas.

Meus deslocamentos começaram bem cedo, quando não havia sequer a percepção do que isso significaria para mim. Eu tinha seis anos, quando a minha família se mudou pela primeira vez.

Quando fui de São Paulo para o Paraná, tudo foi uma tremenda aventura. O primeiro choque com a realidade se deu aos 12 anos, quando fizemos o caminho de volta. Simplesmente percebi que não pertencia ao grupo da minha própria cidade. Eu falava diferente, tinha outras expressões e o acento forte, que carregava a pronúncia do “e” no final das palavras, foi motivo de muito constrangimento. Naquela época isso não tinha nome, mas hoje seria chamado de “bullying”. Curioso é que quando eu voltava à cidade onde cresci, para rever amigos e matar ra saudade, acontecia o mesmo, já que agora eu falava as palavras terminadas em “e” com o som de “i”. Então, também lá, era eu a diferente.

Eu era a estrangeira e nem sabia. Temos que levar em conta que esses fatos passavam despercebidos, afinal, como ser estrangeira dentro do próprio país? O não pertencimento a nenhum desses lugares, aliado à idade e à experiência que tinha, só me que realmente davam a sensação de estar fora de algum padrão que realmente não compreendia.

O tempo foi passando e com ele vieram outras mudanças que, apesar de terem exigido algumas adaptações, não foram tão marcantes.

Até que, já adulta, mudei de país. No início, pensei que fosse só mais uma mudança como todas as outras, mas, de repente, fui chamada de “gringa”, ou melhor, de “laowai”- como os chineses chamam o estrangeiro. Então tudo fez sentido, pois aquela sensação da minha infância e adolescência, finalmente ganhou uma definição, ela se encaixava perfeitamente na descrição do que senti naquele momento.

E mesmo tendo morado por muitos anos na China, lá nunca deixei de ser estrangeira. Interessante foi que só então me tornei ‘oficialmente’ uma estrangeira também no Brasil.

Quando náo havia mais como ficar na China, nos mudamos para Portugal, e, mais uma vez, passei por esse processo desafiador, mas, ao mesmo tempo, interessante e que só me faz crescer. E é aí que está a magia disso tudo: ter consciência do processo, das mudanças, dos ganhos, perdas e seguir caminhando, um dia de cada vez.

Assumi essa condição de estrangeira e isso hoje não me incomoda, mas ainda me faz refletir de tempos em tempos. Eu já experienciei o não pertencimento por diversos ângulos e venho aprendendo a aceitar que, para mim, nenhum lugar será o ideal, pois, a essa altura, ando coberta com uma colcha de retalhos muito grande.

Colcha que venho cerzindo desde a infância, com pedaços de tecidos de diferentes texturas, cores, estampas que se complementam, e que mostram em cada detalhe uma fase da caminhada, nem todas perfeitas, mas todas vividas com intensidade.

Colcha que vou alinhavando cada ponto, cada emenda, que me fizeram ponderar, crescer e chegar até aqui.

Colcha que venho costurando com aquilo que mais importa para mim: minhas referências, minhas paixões, meus gostos.

Colcha em que venho combinando tudo isso, que se encaixa e se mistura, compondo lindamente a minha história.

Sigo aqui, costurando os retalhos que me permitem abrigar mim os sonhos, as pessoas, os dias tristes e os felizes para, de certa forma, amparar quem passa pelo meu caminho.

*Esse texto foi originalmente publicado na Coletânea ESTRANGEIRAS – Histórias sobre a travessia do SER.

Zái Jián!

2 pensamentos sobre “Colcha de retalhos

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