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Livro: Mensagem de uma mãe desconhecida – Xinran

Nada como muitas horas de voo para se inspirar e escrever. Acabei de fazer o post de novembro do ‘Brasileiras pelo mundo’, outro blog que sou colaboradora, e comecei escrever esse.

Mas na realidade esse texto está remoendo na minha cabeça há bastante tempo. Li este livro da Xinran na viagem para o Brasil. E página por página me surpreendi, me emocionei e me revoltei algumas vezes. Mas no final, mais uma vez vou ter que repetir: não consegue entender e viver bem na China quem não conhece ao menos um pouco da história sofrida desse país. Até para as coisas mais brutais, como foi (e acredito que ainda é em algumas regiões mais remotas do país) o descarte de bebês do sexo feminino.

E considero descarte mesmo, pois ao ler esses relatos de mães que perderam suas filhas, segundos após o nascimento e de avós ou parteiras que “sabiam resolver” (termo usado, segundo a autora) o problema de maneira simples e rápida, a palavra assassinato soa muito forte.

Xinran e a capa do seu livro.

Xinran e a capa do seu livro.

Por mais difícil que seja entender essa peculiaridade da cultura chinesa, essas mães, avós, pais também, sofreram horrores por ter que descartar essas bebezinhas. E minha inquietação para escrever esse post, é de que forma eu poderia descrever todo o turbilhão de sentimentos que passou pela minha cabeça ao saber exatamente de onde vem esse costume absurdo e desumano.

A história da humanidade esta cheia de absurdos e injustiças com a mulher. Alguns povos ainda persistem dentro desses padrões mutilando, aprisionando e/ou escravizando meninas por toda sua vida, a ponto de muitas nem saberem que existe respeito pela mulher na maioria dos países hoje em dia. Vamos combinar que em alguns casos na nossa sociedade supercivilizada, o preconceito ainda existe e é forte, mas não tão cruel do ponto de vista físico. Mas esse não é o rumo deste post. Só citei esses fatos, para que meu leitor possa colocar o ‘fiel da balança’ e lembrar que injustiça e atrocidades acontecem em todos dos lugares desse nosso planeta.

Bom, nesse livro a autora relata alguns casos que presenciou, e até participou tentando ajudar essas mulheres, de mães desesperadas por terem perdido suas menininhas. Para quem pensa que o chinês é só frieza e que matam as meninas por simples prazer, esse livro explica muita coisa e ainda coloca em pauta o quanto as mulheres chinesas sofreram por milênios com essa discriminação.

E um dos pontos que Xinran tenta desmistificar:  muito antes de se pensar na lei do filho único, que só começou a vigorar na década de 1980, a China já descartava as meninas. Desde o tempo do império (e nessa época o mundo discriminava a mulher abertamente) o fato de não se ter um filho homem gerava desonra entre as famílias e a perda das suas raízes. Essa prática era comumente aceita e o estranho era uma família que aceitasse filhas para criar. Quem tinha condições de dar de comer a todos, mantinham as meninas, pois seriam mais um braço para trabalhar até que se casassem. Quem não tinha, descartava e tentava outra gravidez até nascer um menino.

Os antigos acreditavam que só um filho homem poderia dar continuidade e honrar o nome do pai. Na China quando uma mulher se casa, ela deixa de pertencer à família de seus pais, passando a ser membro da família do marido e com a obrigação de cuidar dos sogros na velhice. Se uma família só tem filhas, quem cuidará desse casal? Dentro dessa cultura, para que o pai de menina precisa ter muitas terras, se não haverá quem de continuidade? Então só recebiam terras as famílias que tinham filhos homens. E com essa tradição deu-se início ao descarte de bebês do sexo feminino.

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Essa foto nada tem haver diretamente com o livro, mas ao procurar a foto da capa do livro me deparei com essa imagem, e para mim traduziu a alma da mulher chinesa que passou pelas situações descritas nesse livro. =[

Triste e cruel, mas foi à realidade chinesa por séculos e ainda acredito que seja assim no interior do país aonde, em muitos casos, nem luz elétrica chegou lá.

Fora isso, existe o ranço dessa prática que fica no inconsciente coletivo de um povo. Hoje nas grandes cidades as meninas são bem-vindas (até porque a maior fortuna da China pertence a uma mulher), mas algumas vezes podemos notar a alegria comedida do pai, quando recebem a notícia que o bebê é do sexo feminino.

Nesse caso, a lei do filho único tem um peso grande. Mas o governo tinha que tomar essa decisão (e isso foi bem explicado pela autora do livro) e hoje já está abrindo alguns precedentes para um segundo filho nas regiões mais desenvolvidas.

Além desses relatos, Xinran publicou na íntegra a ‘lei do filho único’ e a lei de ‘adoção chinesa’, relatos de mães ocidentais que adotaram meninas chinesas, além de sua própria história quando tentou criar uma menina que os pais morreram tragicamente. Outro fato que me chamou atenção foi um estudo sobre o suicídio feminino, que na China está entre os maiores do mundo.

E um dos relatos, foi justamente de uma mãe, abandonada pelo marido e expulsa da casa dos sogros por não gerar um menino. Ela tenta o suicídio e ninguém entende, mas no final se descobre a causa: ela trabalhava em um restaurante e as duas tentativas aconteceram depois de presenciar festas de aniversários de meninas. Ela não se conformava por não ter as suas para abraçar e ao mesmo tempo, não entendia como na ‘cidade grande’ as meninas podiam ser tão amadas a ponto dos pais fazerem uma festa para celebrar seus aniversários.

Por aí podemos perceber a mudança de mentalidade chinesa, mas que como em qualquer cultura sempre é mais lenta que o progresso de concreto e tecnologia.

Para quem tem curiosidade e interesse sobre o assunto, vale á pena. É triste, mas real. E, por incrível que possa parecer, esclarece muita coisa. Lembre-se que eu sempre digo que entender não é aceitar. Muito pelo contrário, mas ao menos nos faz refletir sobre as posturas das diferentes sociedades. Já escrevi um post sobre outro livro de Xinran, As boas mulheres da China, que você pode ler aqui.

Na sua ânsia de defender o direito e a dignidade da mulher chinesa, ela fundou uma ONG na Inglaterra, onde mora, chamada ‘The Mothers’ Bridge of Love (MBL) – 母爱桥’, aqui é o link do website e da página do facebook (ambas em inglês).

MBL

Um exemplo de dedicação e amor ao seu país e sua gente. E mostra que a generalização é uma atitude preconceituosa e cruel. Chineses, como brasileiros, ingleses, americanos, dinamarqueses, coreanos etc… são, acima de tudo, seres humanos. Pensem nisso.

Zai jian!

20 pensamentos sobre “Livro: Mensagem de uma mãe desconhecida – Xinran

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  6. Belo post…essa autora (Xinran) é maravilhosa mesmo…se não me engano ela também escreveu – As boas mulheres da China (Ed. Cia das Letras). Faz um retrato fiel do país, sem exageros ou pieguices. Parabéns pelo blog bem feito e com palavras que tocam as profundas emoções!! Abraços…

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  7. Nossa, Chris, vc me fez chorar… me senti no lugar dessas mães… extremamente cruel e doloroso! Pelo que entendi, a “Lei do filho único” ainda existe na China, mas esse tipo de comportamento também persiste? É como vc diz, não nos cabe julgar, apenas procurar entender… mas como é difícil, não? Esse livro foi publicado no Brasil?

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    • OI Ro.
      Sim eu comprei o meu no Brasil. Tem vários livros dessa autora, inclusive no post um link para um outro que escrevi sobre ela. A lei do filho unico é relativamente nova na China, 30 anos mais ou menos.
      As práticas contra as bebes talvez ainda persistam no interior do pais. Não se sabe ao certo. Beijo

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  8. ….Oi! realmente tem de se conhecer os costumes, a história para entendermos
    como as cisas acontecem! Me repetindo, adoro como vc escreve! beijo grande para vc e familia!

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  9. Oi Christine!
    Amei o q vc escreveu hj e me emocionei…
    Como vc disse entender ñ é aceitar e só lendo e entendendo uma estória dessas, se sabe a razão o pq de coisas tão bárbaras contra o ser humano…
    Beijussssss

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  10. É Chris, pra tudo que é barbaridade nesse planeta encontra-se uma razão, uma “desculpa”…Difícil é colocar-se no lugar do outro, sentir, nem que seja um pouquinho, o sofrimento do OUTRO, quando submetido às crueldades. Simplesmente, deixam de ser crueldades para quem não está no lugar da vítima que perdeu sua filha, que foi mutilada, abusada, escravizada, etc. Dói quando nos colocamos no lugar da vítima…
    Esse nosso planeta é super contraditório: por um lado vemos solidariedade em alguns casos e entre indivíduos, e por outro sabemos de atrocidades cometidas em tudo que é canto. Fala-se tanto em espiritualidade, em Deus e deuses… fala-se, fala-se e fala-se… Na verdade, as práticas, as ações, são bem outras. Os povos oram em templos por esse mundo afora, mas não agem de acordo com suas orações.
    Não sou religiosa, no entanto, sigo alguns preceitos que acho válidos e que combinam com minha consciência, ou seja, “NÃO FAÇAS AOS OUTROS O QUE NÃO GOSTARIAS QUE FIZESSEM CONTIGO”. Isso envolve tudo. O respeito ao sentimento do OUTRO é essencial e acabaria com práticas absurdas.
    Quem sabe um dia chegaremos lá? Quem sabe?…
    bjs da regin@

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    • concordo plenamente com vc Regina, e também julgar sem olhar em volta é muito raso. Temos telhado de vidro…outra época, outras atrocidades, outra realidade….mas temos manchas na nossa linda história também! =] Beijo grande.

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  11. Christine, apesar de ter conhecimento desse absurdo, ao ler esse post a gente tem vontade de chorar. Se a gente der uma boa olhada no mundo pode perceber que isso ocorre em todos os lugares conforme as necessidades majoritárias.
    Te países que descartam os idosos, outros descartam os deficientes físicos, outros descartam mendigos e moradores de rua,…, e por aí vai.
    Claro que não concordamos com isso, todavia se nossa opinião incomodar pessoas muito grandes e influentes, descartam a gente também.
    Temos que lutar pelas mudanças em função da educação e da ética. Não podemos desanimar.
    Essa postagem é bastante realista e foi muito bem colocada. A gente está sempre correndo atrás de maravilhas para ganhar dinheiro com o turismo e não mostra os “podres” que incomodam as instituições e que ninguém se interessa por resolver (e tem solução!).
    Enfim, no ano que vem temos copa do mundo aqui. Em função do turismo, vamos observar onde serão colocados nossos mendigos e moradores de rua das grandes cidades.
    Um abraço grande para vocês aí,
    Manoel

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    • É Manoel… sempre digo que o problema não sao os chineses ou os brasileiros… existem seres humanos com valores diferentes, em qualquer lugar!
      E no Brasil, infelizmente, temos nossas ‘manchas negras’… beijo e obrigada pela visita!

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  12. Oi Cristina! Parabens pelo post, realmente muito esclarecedor e importante para que o mundo possa entender o peso de uma cultura de mais de 5000 anos. sou marido da Vanessa, do blog vanvanchina. Temos que marcar um jantar hein!? abracos!

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    • Vamos mesmo Davi! Também gosto muito da maneira como a Vanessa escreve. Viver aqui é bom, mas como em qualquer outro lugar do mundo tem coisas boas e ruins. Minha filosofia é que se somos hóspedes, precisamos entender e respeitar o que não nos agrada…quem sabe um dia ver mudar! =]
      Volte sempre e vou combinar com a Vanessa nosso jantar!!rs

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